27/03/10

Ivan Kramskoy "Cristo no deserto" (1872)


A ideia mais importante que ocupava Ivan Kramskoy nesta altura (anos 60 do século XIX) – era a tragédia da vida daquelas pessoas que voluntariamente recusaram a felicidade pessoal. E a melhor, a mais pura imagem, que o pintor podia encontrar para a expressão da sua ideia era a figura de Jesus Cristo.
Kramskoy planeou este quadro durante uma década. No inicio dos anos 60, ainda estudando na Academia das Artes de São-Petersburgo, ele fez o primeiro esboço, e em 1867, a primeira versão do quadro, que não o satisfez. Em Novembro de 1869 o pintor vai à Alemanha, depois a Viena, Antuérpia, Paris para “ver tudo, que já foi feito neste tema”. Ele visita as galerias de pintura e salões artísticos, estuda a arte antiga e moderna, e depois de voltar para a Rússia, viaja até à Crimeia, onde a natureza é parecida com a dos desertos palestinianos.
"Sob a influência de várias impressões – dizia Kramskoy depois, - eu ganhei um sentimento muito grave em relação à vida. Eu vejo claramente que há uma altura na vida de cada pessoa, no mínimo criada à imagem e parecença com Deus, quando ela começa a pensar: será que devo ir para a direita ou para a esquerda, vender o Deus por um rublo ou não ceder ao Mal nem por um passo?"
Como resultado destes pensamentos, o pintor sentiu “uma necessidade de contar aos outros o que eu penso. Mas contar como? De que maneira eu posso ser entendido? E um dia vi um homem sentado em pensamento profundo. O pensamento dele era tão sério e grave, que muitas vezes eu o vi exactamente na mesma posição".
A plástica do rosto deste homem também impressionou o pintor. Os lábios dele pareciam secos, colados do longo silêncio e só os olhos revelavam um trabalho interno, embora não vissem nada. E "eu percebi, - escreveu Kramskoy, - que este carácter era daqueles, que tendo o poder de destruir tudo e talento de dominar o mundo inteiro, resolve não fazer o que os instintos animais o mandam". E depois disso nasceu a imagem – no inicio vaga, depois mais e mais clara, profunda e poderosa.
Kramskoy imaginou a cena tão claramente, que ele nem precisou de fazer muitos esboços, só fez alguns de gestos de mãos, da imagem, da roupa.

A falha da primeira versão do quadro, que não satisfez Kramskoy, era o formato vertical da tela, tendo imediatamente desenhado um homem sentado nas pedras numa tela grande horizontal. O formato horizontal deu possibilidade de apresentar o panorama de deserto rochoso infinito, onde um homem solitário andou dias e noites em silêncio mudo. Só na madrugada, cansado e exausto sentou ele na pedra, ainda não vendo nada à sua volta. Já o horizonte corou com o sol da manhã, a natureza prepara-se para amanhecer, e só este homem está indiferente à beleza que o rodeia e alegria da vida, está perseguido por um pensamento grave. Os traços da emoção dolorosa e profunda estão no seu rosto cansado e triste.
Kramskoy pintou a roupa do Cristo de uma forma moderada, reservada, para sublinhar ainda mais o rosto e as mãos, que são precisos para a convicção psicológica da imagem.
Não há acção nesta obra, mas a vida do espírito, o trabalho de pensamento são evidentes. Os pés do Cristo são feridos por pedras agudas, a figura está curvada, as mãos fechadas em sofrimento. O tempo passa por ele sem ele dar conta. E a sua cara exausta transmite não apenas sofrimento, mas apesar de tudo exprime a enorme força de vontade e resolução de dar o primeiro passo no caminho rochoso que vai até Gólgota.

Depois de ser exposto o quadro “Cristo no deserto” provocou fortes discussões, os oponentes do Kramskoy diziam que o Cristo dele não tem nenhuns traços da divindade, ficando escandalizados com o tipo “não russo” da cara dele.
Kramskoy pensou no “seu” Cristo durante muitos anos, “sofria em silêncio”. Chegou ao ponto de duvidar se realmente foi Cristo quem ele criou. “Este não é Cristo, - escreveu o pintor, - quero dizer, que não sei quem é este. É uma expressão dos meus pensamentos pessoais".

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